segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O viajante e o sol


Anda só, ó viajante, que a lua não demora a nascer! Ártemis, que outrora sangrava, agora entrega-se ao regozijo que traz a noite taciturna. O escorpião que hospedaste em tua língua macia busca, enfim, sua toca, de onde saiu em busca da alvorada como um herói em busca da glória.

Anda só, ó viajante, que a noite te espera como espera a seu amado! A flor fulva, que antes prosperava nos abismos de tua alma, agora expande suas suntuosas pétalas ao céu como quem entrega um presente a Deus. Dela já não brota a víbora, o medo, o ódio ou a morte. Nada disso! Da flor fulva brota o pássaro vermelho do amanhecer que reverencia a noite quando é chegada a hora!

Anda só, ó viajante, e te detenhas somente ao admirar as flores! Sim, estanca-te nas flores, estes presentes dos imensos anos de acaso que contemplam a vida com magnânimos olhos coloridos e variados em formas! Estes presentes que emprestam de Apolo tudo o que é de belo e que vibram como o céu coberto de um azul reluzente!

Anda só, ó viajante, e sê como o sol: reverencia o cair da noite oferecendo teus braços luminosos ao firmamento que tomaste emprestado como caminho. Não temas a escuridão da alameda noturna que se descortina diante de teus olhos: entrega-te à tua natureza! Sê fogo, mas não te demores a reluzir em uma só paragem.

E quando perguntarem a ti, ó viajante, o porquê de tua dura caminhada, tu, diante das flores balsâmicas e sob o olhar sereno da lua, dirás: “Ando porque caminhar qualquer caminho prostrado sob a beleza deste mundo é ter diante de si o universo.”

O viajante e a flor


Eis que o viajante, sob o sol escaldante do deserto, encontra, enfim, seu oásis. Ele o deseja não pelos alívios e prazeres que promete a dócil paisagem, senão porque seu coração lhe diz: “Há também ali o que aprender.”

- Veja só: que presente do acaso encontrar tão magnífica paragem em dia tão belo! – diz o viajante a si mesmo ao deitar as vistas sobre o verde horizonte – Meus pés ardem mesmo sobre estes resistentes calçados e minha pele é incendiada sob os raios de meu companheiro reluzente; mas assim mesmo: que alegria inenarrável sinto neste dia!

Nosso herói adentra a cortina de esmeraldas e sente logo o frescor úmido da floresta. Seus pulmões arfam sob o suspiro das folhas e seus olhos, como espelhos, refletem o fulgor esverdeado das copas das árvores. É impossível se opor ao sorriso suave que, perante o canto dos pássaros, surge em sua face. Como a metamorfose de uma lagarta em borboleta, seu sorrir transforma-se em um gargalhar ébrio que ressoa pelos quatro cantos da mata: nosso viajante é tomado de um entusiasmo divino!

Mas há algo que, silenciando o soar de sua alma extasiada e estancando-lhe os passos leves, chama-lhe a atenção. Seus olhos percebem, a alguma distância, uma clareira da qual se estende um caminhozinho quase imperceptível cujas bordas são respaldadas por flores de um perfume intenso. Todo esse colorido em meio ao mar verde lhe soa como um clamor, e o viajante não tem escolha senão se entregar ao chamado docemente tingido por pétalas deíficas.

À voz das cores confunde-se, então, um canto terno e melodioso que, a princípio longínquo, passa a crescer em ritmo lento até que nada mais exista além dele. Como o desabrochar repentino de uma flor, a floresta dá lugar a um lago que se descortina tal qual um espelho, refletindo a vegetação que, em coroação, o veste. Ai! Mas nada disso existe para o viajante: para ele conta somente a moça cuja voz arrebatadora é derramada docemente por todo o oásis como um perfume. A cantora, que já havia notado sua presença muito antes, deita-lhe um olhar afável e, sem deixar de fazer música, dirige-lhe um sorriso comovente e levemente distorcido pelo cantar. Por longo tempo os dois se olham profunda e docilmente, e nosso herói não deixa de reparar nos detalhes mais ínfimos de sua musa. Seus lábios, tingidos de um vermelho vibrante, desenham-se perfeitamente e rodeiam sua boca como cadeias de montanhas ruivas a rodear um abismo; seus olhos, verdes e penetrantes, dotam-se da beleza de tudo que já contemplaram um dia, como crianças que brincam com o sol e passam a reluzir junto dele; seu vestido, colorido de um tom de rosa airoso, cobre sua pele como as pétalas de uma flor cobrem-na em botão; seus cabelos castanhos quedam-se suavemente por todo seu corpo como uma cascata a banhar diamantes e rubis. Ora, mas o canto tinha de encontrar seu fim: o destino dos sonhos é a névoa.

Seria justo dizer que onde há pouco havia criatura tão bela agora nada há senão flores vestidas de um rosa delicado?

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O retorno de Vênus


Rubens esforçava-se para abrir os olhos naquela manhã de domingo. Não subestimemos tal tarefa, porquanto exigia-lhe uma força hercúlea. Morfeu interessava-se especialmente pelo nosso herói, dentre tantas outras almas que vagam pelo mundo aos trapos. Como era-lhe difícil o simples trabalho de abrir as pálpebras! Se um dia lhes for proporcionada a ocasião de conhece-lo, perguntem-lhe sobre esse ocorrido específico; garanto que lhes será dito o seguinte: “Deuses! Meus olhos eram como os ombros de Atlas!” Pois bem, a manhã de Rubens anunciava-lhe o retorno de Vênus.
Enquanto Rubens acorda – o que pode levar algum tempo – entreguemo-nos ao luxo de uma pequena digressão. O que pensa o homem comum sobre o amor? Uma pesquisa rápida faz descortinar uma porção de websites repletos de dizeres diversos a respeito do assunto. “Nunca implore carinho, atenção ou amor. Se não for dado livremente, não vale a pena ter”, “Até de longe você me faz bem”, “No amor não há ‘pessoas certas’, há pessoas que lutam para dar certo”, “Vamos fazer assim: eu cuido de você, você cuida de mim”, “Felicidade é poder estar com quem se ama em qualquer lugar” e, por último, “Amor é apenas uma palavra... até que encontre alguém que dê um verdadeiro sentido a ela”. São esses alguns exemplos, meus senhores. Sabem o que penso disso? Mesmo que não tenham o menor interesse, lhes direi: o amor para o homem comum é o emprego total de sua imbecilidade! Digo-lhes que esse sentimento perdeu todo o sentido há muito tempo! Dizem amor – esse amor romântico – da necessidade vil de se possuir alguém para que seu corpo, esse saco de carne e ossos ambulante, produza boas sensações. “Ora, mas não são quaisquer boas sensações! A sensação que se dá é de um êxtase indescritível! Sente-se tanto amor que...” Perdão, senhores, mas urge uma interrupção. Diziam que se sente tanto amor que chega a doer? Doer o que, esse baço podre que cultivam dentro de seus corpos? Já ouvi de um molecote tais dizeres. Acreditava amar profundamente sua companheira e amaldiçoava qualquer um que não sentisse o amor da maneira ridícula como o sentia. Diria ele em qualquer ocasião em que percebesse que seus valores não encontravam os valores de outrem: “É falso seu amor.” Ouçam ao Filósofo da Alvorada: “O amor é o estado no qual os homens veem as coisas quase totalmente como não são.” Ora, o amor romântico, então, nada mais é do que um estado puramente ilusório! Ama-se para se escapar da realidade dura – mas não menos verdadeira - que é a solidão eterna! Vê-se logo que o amor para o homem é como uma muleta sem a qual ele há de rastejar até o momento derradeiro... se assim quiser.
Estamos no ponto de nossa narrativa em que Rubens acaba de calçar os chinelos (transferimo-nos para o presente de nosso herói; abandonamos o passado). Há algo de poético neste domingo banal, ou talvez o dia não seja de todo frívolo, mas como é um domingo, atribui-se-lhe, pela ausência parcial de banalidade, um caráter poético. De qualquer forma, Rubens sente o presságio da letargia, cujo início se deu em seu primeiro ato: a tentativa de abrir os olhos. Ah, como essa morosidade lhe é difícil de resistir! Canso-me somente de imaginá-lo em direção à cozinha a passos lentos. Esperem! Alguém acaba de acionar a campainha. Surpreso, caminha à porta e gira a maçaneta. Não há ninguém, mas quem quer que tenha sido deixou uma velha caixa de sapatos sob alguns livros. Rubens reconhece os livros e, por conseguinte, a pessoa que lhes havia deitado ao pé de sua porta. Havia sido Tereza. Ora, na caixa Rubens sabe o que há; sempre soube que este momento haveria de chegar: é Vênus esculpida em mármore por um artesão ateniense. Rubens presenteara Tereza com esta maravilha há alguns anos, quando se deu sua viagem solitária.
Para Rubens, o que era Vênus? Ora, a deusa representava o oposto do que representa o amor para as pessoas banais: não constituía uma muleta, senão uma consequência do anseio à vida; não representava um desejo mesquinho, senão um eterno estado de gratidão. Vênus dava-lhe asas e sua alma atravessava universos. Amava as mulheres que passavam por sua vida como se ama o céu e o mar! Gostaria, sim, de tê-las por perto; mas isso só para que pudessem sentir seu amor e para que aprendessem com ele a semeá-lo. Tereza foi uma dessas mulheres, e Rubens a presenteara com Vênus como que para lhe dizer: “Escolhi a ti para receber meu amor sublime! Agora espalhe-o mundo afora!” Mas Tereza entendeu errado.
A devolução do presente – ato extremamente rude e, portanto, altamente significativo – queria dizer uma coisa: “Vejas só, cresci sempre a ouvir que quem ama se sacrifica pelo ser amado e que não há amor sem proximidade, isto é, quem ama deve querer estar perto todo o tempo, deve querer oferecer carinho sempre, deve, enfim, amar apaixonadamente durante toda a vida o mesmo amante. Tu não me ofereceste nada disso, logo concluo que teu amor é falso!”
Rubens agora sorri e parabeniza mentalmente sua antiga amante pelo olhar poético. O retorno de Vênus significa para Tereza a negação do amor. Rubens pensa: "Nega-se o amor sublime ao confundir-lhe com o amor banal." Meus senhores, não mais nos entreguemos às imbecilidades dos cordeiros vingativos, não sejamos mais tal qual o molecote que outrora caçoou do amor de outrem. Deixem que sintam asco! Deixem que lhes repudiem! Deixem que esses cordeirinhos, fracos como moscas, temam aqueles que anunciam a alvorada e, por conta disso, manifestem-se como criaturazinhas raivosas! Deixem ainda que esses animais inválidos sintam-se presos para sempre às suas muletas! 

O retorno de Vênus simboliza para Rubens o amanhecer. É hora de arrebentar o ovo furiosamente. 

terça-feira, 27 de junho de 2017

O delírio do santo

Sou Prometeu imerso no oceano abissal. “E o que é o oceano abissal?”, perguntais-me. Digo-vos que é o assoalho da alma humana, é a região remota inexplorada: o medo tornou-a inóspita e hostil. É desse abismo que o uivo dos lobos e o grunhir dos porcos é ouvido; é nesse abismo que rasteja a víbora; é nesse abismo que descansa a morte; é nesse abismo que a peçonha do escorpião é destilada; é nesse abismo que sangra a lua; é nesse abismo que a flor fulva prospera! É no abismo mais profundo do oceano da alma que paira o lamento da lira. Determino-vos: contemplei vossas profundezas! Deixai que minha chama arda no oceano abissal e traga luz a cada tímido e obscuro animal que insiste em rastejar por entre as frestas da vergonha! No entanto, não admitais que a aurora da benevolência perpetue em vosso abismo – de outro modo acabaríeis cegando as criaturas do submundo. Acima de tudo: amai tudo o que é escuro e negro, tudo o que é fétido e putrefato! Desprezai somente uma coisa: a fraqueza e o ressentimento. Há beleza em tudo o que permeia a vida, exceto nas forças que se afiguram como antítese do que é vivo. Ora, não falo da morte: amai também a morte! Ó homens que buscam além do que é fútil e que não mais se entretêm com as imbecilidades dos cordeiros vingativos: amai mesmo vossa face diabólica – e principalmente ela! Porquanto não há mais um Deus e um Diabo; estes sucumbiram há muito e de suas cinzas elevou-se Abraxas!
Não sou afeito à flecha que trespassa a alma em um só golpe; sinto mesmo desprezo por aquilo que causa, por meio da estética, o êxtase imediato. Este afigura-se como um sentimento religioso, como a visão de um santo – coisa que não é mais para este século. Somos homens da ciência, e o que se descortina de uma vez só como um espetáculo amador deve ser por nós repudiado: nada menos. Como um palhaço que entra em cena, a flecha impetuosa colore nossa face de riso; pensamos então: como é deliciosa a vida! Perdoais-me a analogia deveras inadequada; posso atingir vossos corações com o que é santificado, quiçá? Pois ouso dizer-vos que o mais santo dos santos é também o mais palhaço: faz-me rir com sua vaidade – a propósito, tão colorida quanto à face dos artistas de circo. O santo – e não só o santo  que é atingido pela flecha uivante pensa que viu Deus: de fato foi apenas envenenado. Este é o caráter da beleza imediatamente extasiante: tóxica!
Ah, mas não penseis que me privo de toda beleza! Amo não a flecha que uiva como os lobos das estepes, mas a flecha que, vagarosa, pouco a pouco perfura a alma. O santo não a conhece, porquanto vive das fantasias que assaltam-no de quando em quando; e quanto ele sofre quando não corre em suas veias o delírio! O homem afeito pela flecha lenta, ao contrário, é repleto de disciplina e vibra enquanto caminha ao seu destino. Sua trajetória: essa sim é amada como flecha impetuosa. No caminho do espírito livre nada há que não possa ser transpassado por sua vontade. E, enquanto a flecha de sua alma é lançada implacavelmente ao alvo, a flecha da beleza lenta perfura, aos poucos e hesitante, seu coração. A grande alegria gozada após tantos caminhos percorridos derrama-se paulatinamente sobre as frestas de seu cérebro. Quando se dá conta, tantas montanhas foram sobrepujadas que o homem livre regozija-se de sua força e persistência; não como o santo, que, como um cão guloso, satisfaz-se com restos moribundos - não há como exigir dele outra coisa -, mas como um homem nobre que se delicia com um banquete sem se lançar desesperadamente ao alimento. O banquete é duradouro; os restos, efêmeros. O líquido reluzente que penetra as fendas do homem livre é diferente do chorume que enche a barriga do santo. 
“Mas não nos incitastes, Prometeu, a amar tudo o que é negro e pútrido? Por que, então, não amar o líquido viscoso na barriga do santo sempre faminto?” Ó homens sensatos, em verdade há muita prudência em vossas palavras inquiridoras; mas não vos esqueçais de que há de se amar o que é podre no oceano abissal porque seu estado putrefato só existe por falta de luz; isto é, por falta de conhecimento! O santo e o que há nas vísceras do santo, por outro lado, deve ser desprezado. O que o homem comum faz é o contrário: ama o santo e bebe de bom grado sua bile, mas despreza o que foi renegado em seu próprio coração. Por isso ofereço-vos minha chama: a da razão, não a da benevolência. Iluminai o assoalho de vossas almas para que o que é moribundo passe a irradiar vontade; mas não cegueis as bestas com vossa moral! Lembrai-vos disso: a verdade purifica; a compaixão cega.  Por isso, tornai puro o que é ignominioso, mas espantai a aurora que insiste em queimar as criaturas das sombras.


E quem possui um pouco de santo dentro de si deve lançar-se no abismo de sua alma! 

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Prometeu Acorrentado

Covarde! Tu és, mil vezes, covarde! Já não basta a ti grunhir como os porcos e ladrar como os cães: tu anseias ser porco e também cão! Tu te enches de uma coragem falha e tímida que só serve para metamorfosear-se em coisa insignificante na hora de pôr-se em prova. Mesmo os porcos têm vergonha de teu grunhido aberrante, e mesmo os cães silenciam-se diante de teu ladrar a fim de discernir a boca que lança sons tão abomináveis. Tu, ó criatura deformada, rasteja não por ser serpente, senão porque teus membros já não dispõem de serventia alguma. Avalias que minhas palavras são duras? Pois digo-te que a verdade faz doer muito mais que a ave que devora tuas vísceras!
Ó Prometeu Acorrentado! Amo-te como o céu ama o mar, mas teu amor por grilhões impede-me que te socorra de teu pungente lamento! És de tal forma afeiçoado às correntes que não hesita em entregar de bom grado o fígado à tua desgraçada águia. Até mesmo confundo-me quanto aos gritos vindos do alto do Cáucaso, porquanto não posso identifica-los como motivados por dores ou prazeres. Digo-te, ó Amigo dos Homens: amaldiçoa Zeus e também Hefesto! Deixa de lado tua covardia e berra a plenos pulmões a mais variada sorte de injúrias aos teus malfeitores, àquele que te condenou ao sofrimento diário e àquele que forjou tuas cadeias! Cuspa tua saliva rançosa na face daqueles que são mais insetos que deuses!
Tu deixaste que te vazassem os olhos e entregaste de boa vontade tua língua aos lobos. Agora já não vês e não falas: tornaste-te um cordeiro à mercê dos teus açoitadores. Tua maldição paira sobre teu semblante esperando que estejas novamente inteiro – assim é que tua ave aguarda pacientemente a valorosa refeição. Ponho-me a gargalhar nervosamente quando vislumbro tua figura desnutrida: tua boca espuma pelos cantos e tu me espias languida e estupidamente como se em teu crânio teus miolos já houvessem sido moídos. Ai! Esperanço-me que tenha restado em ti uma fagulha de lucidez para que não te prontificasses a furar teu precioso tímpano! Se assim tiver sido, imploro-te: ouça-me, ó Ladrão das Chamas!
Ainda há tempo para que te libertes de tua maldita sina! Se pensas que tua ominosa águia é já tua única fonte de sensações, estás plenamente enganado. Deixa de imaginar que tua dor pungente é prazer e abrace o prazer verdadeiro! Prometeu, aguça-te bem os ouvidos: posso trazer a cura para teus membros inválidos, teus olhos vazados e tua língua extirpada! Tu podes ser grande como um dia foste; basta que deixes de lado afeição tão profunda pelas cadeias. O que? Tens compaixão da águia que se alimenta todos os dias da tua vida e que morrerá de fome caso tu te decidas pela libertação? Ó criatura estúpida: amaldiçoa tua desgraça! Deixa de amar aqueles que só te trazem moléstia!
A compaixão é o pior fardo que homens e deuses podem prostrar sobre os ombros. O que pensas que és? Um camelo, quiçá? Pois digo-te: deves tornar-te um leão! Deixa de sonhar que estás no deserto e que teu único consolo é encontrar uma alma que ponha sobre tuas corcovas os pesos mais abomináveis; livra-te do que mantem teus pés firmes sobre a areia quente! Entrega-te à dolorosa leveza! Aniquila o dragão em cujas escamas reluz o dito: “Tu deves.” Tu, ó Prometeu, Amante da Razão, já voltou teus ouvidos às palavras de Zaratustra? Sê capaz de dizer o tão sagrado Não; torna-te criança e diz o tão criador Sim!
Fora, ó abutres sedentos por cadáveres imundos! Deixai que o que está acorrentado liberte-se das correntes: assim vos ordeno. Lançai mão de vossa carência por tudo o que é ignominioso e atirai-vos ao abismo profundo de vossas almas! Não importuneis o Amante dos Grilhões, porquanto seu amor está prestes a diluir-se em minhas palavras: tornar-se-á, enfim, livre! Apresento-vos a preciosa luz que espantar-vos-á; refiro-me a ela como egoísmo. Prometeu, deixa de exalar compaixão para que estes vultos que pairam sobre ti enfim mergulhem sob a terra carcomida por vermes! Acorda, ó Prometeu Acorrentado, e liberta-te de tuas cadeias!


Que tipo de sonho sonhaste durante teu sono profundo?

domingo, 10 de abril de 2016

A lira

Não suportava mais o medo da queda: temor que estendia-se desde os primórdios de sua existência. A força esmagadora com a qual era tragado para as profundezas de seus próprios abismos o fazia aiar em pungente e doloroso sofrimento; no entanto, voejava sobre o cume mais alto de sua alma. Sim, era dotado de asas, as quais lhe foram dadas pelas artes. Quão belas poderiam ser as obras criadas por uma mente humana? Poderiam estas salvar-lhe de seu desespero existencial? Ao menos mantinham-lhe pairando sobre seus infernos, impedindo que estes o consumissem em chamas.
Encontrava-se moribundo e desmazelado em uma cela ignominiosa e soturna.  Era-lhe difícil e laboriosa a tentativa de trazer à tona a memória; não obstante, lembrava-se vagamente de um certo alguém vestido em um traje negro de colarinhos escarlates. Dizia-lhe, enquanto prostrava-se complacente no mesmo chão no qual descobrira-se há instantes:
- O passado, ao contrário do que pensas, não é imutável. Nós o construímos e o destruímos frequentemente e à vontade. Nada é tão verdadeiro que não possa se converter em mentira; nada é tão duvidoso que não possa se tornar certeza. O mundo, há muito tempo, não é mais sólido: vivemos tempos de liquidez. Duvide de teus olhos e teus ouvidos; duvide de tua consciência; duvide de teus medos e teus anseios. Confie em nós: a salvação reside na entrega.
Fora interrompida sua lembrança por ruídos metálicos e sons de passos pesados. Em seu cárcere reinava a escuridão completa, exceto pela meia-luz que o penetrava de uma pequena abertura retangular. Uma silhueta humanoide estancou-se por um momento em frente às grades que os separavam para logo após lançar displicentemente um pedaço de pão velho e rijo. Alimentou-se condescendente e apaticamente, bebeu da água enlameada que gotejava da torneira de sua jaula e deitou-se na superfície fria e úmida.
Era-lhe possível ouvir murmúrios distantes, lamentos e suspiros infames. Ao ouvir gritos lamuriosos e longínquos, crescia em si gigantesca indignação. “Por que me encontro aqui, como também se encontram estas pessoas sofridas da alma e do corpo?”, perguntava-se. Como era de se esperar em um mundo hostil e solitário, nenhuma resposta chegou ao seu espírito. 
Não obstante, pôde paulatina e quase imperceptivelmente sobrepor à lamúria uma música que lhe era conhecida. O plangor longínquo, não sabia se horrorosa ou belissimamente, lembrava-lhe os sons dos violinos de Sibelius, e estes, agora, lhe diziam tudo a respeito de cada boca em clamor.
Seu cárcere, então, dissolveu-se, e à sua volta pôde observar um mundo dourado e vermelho: uma floresta em um dia de outono. Pôde sentir o oboé misturar-se ao canto dos pássaros e o violoncelo pairar sobre a brisa gentil e acolhedora. Estava em paz, envolvido pela necessária solidão. Naquele instante tudo lhe era aprazível, e as chamas que ardiam em seu peito haviam cessado. A beleza estagnante e magnífica dava asas à sua alma.
No entanto, do belo fez-se o horror quando a música fora estraçalhada por um grito pungente e longínquo. O vermelho suave das folhas transformara-se em vermelho escarlate de consistência liquida e o dourado tornara-se meia luz a fraquejar em um corredor escuro. Via que o vermelho escorria de suas mãos e que havia um corpo desmantelado aos seus pés, com as entranhas prostradas a certa distância e o rosto desfigurado por apunhaladas profundas e impetuosas. O cadáver: sua mulher. Fora invadido inicialmente por um onda violenta de horror; no entanto, logo após as primeiras impressões, fez-se em sua face um sorriso de prazer ao perceber que havia concretizado a fantasia que nutria havia muitas primaveras.


Encontrava-se novamente em sua deplorável jaula, mas sentiu-se em paz ao saber que os murmúrios longínquos eram, na verdade, lamúrias de sua própria alma. A música pairava sobre seus lamentos. 

domingo, 6 de dezembro de 2015

Pequena carta de Prometeu a Sól.

Mulher das estrelas,
Escrevo-te de forma cálida enquanto flutuas no teu lugar de direito: terra dos ídolos, dos heróis e dos amantes. Pairas no firmamento, ó Rainha das Cores, bela e sedutora. Ainda que sonhes, teus sonhos difundem sobre a Terra a mais terna esperança; ainda que chores, tuas lágrimas sublimam o coração mais sórdido. Escrevo-te desta região remota cheio de aguardo e saudades. Mesmo longínqua, és o que de mais precioso tenho. Tenho-te sem possuir-te; amo-te sem acorrentar-te.
Ó minha amada, a mim é possível suportar a dor à qual sou infligido todos os dias pois tu sempre te descortinas no horizonte. Se assim não fosse, tal tortura teria corroído minha alma imortal há muitos milênios. Sou castigado por amar a humanidade em demasia como tu; no entanto, deste vida, antes dos homens, aos deuses, e portanto estes devem a ti reverência. Muito diferente do que pensa o Imperador dos Céus, sua punição não me traz desespero ou angústia: em meu rosto estampa-se um grande sorriso, porquanto teu brilho traz-me a mais imensa alegria mesmo frente à maior das aflições.  
Sinto tua falta, pois é noite e estás distante: teus beijos são apenas lembranças. O tecido que cobria teu deslumbrante corpo caía por terra enquanto beijávamo-nos fascinados um pelo outro; tua rosa desabrochava-se a mim e meus lábios percorriam toda tua pele. Deliciava-me em teus seios e ansiava por tua flor cálida e luzidia com todo meu ser. Tornávamo-nos um: nada mais havia no mundo além de nós. Prostrávamos cansados e abatidos por fim, ambos vencedores e derrotados.
Tu, ó fogo dos céus, fazes das nuvens tua carruagem. Vens de encontro a mim, a quem te ama. Espero-te impacientemente e anseio por tua presença mais do que ambiciono minha liberdade. A mim era hábito amaldiçoar o Olimpo; não mais: a alvorada é iminente. Há quem diga que isto denota um dia a mais de flagelo: discordo. Ainda que a águia estraçalhe meu fígado mais uma vez; ainda que as dores mais cruéis pesem sobre meus ombros; ainda que meu sangue tinja o solo de escarlate; ainda que as correntes tesas vistam a liberdade como a mais perfeita utopia, prontamente avistarei a ti e minha vida resplandecerá novamente.

Pois há mais poesia no encontro que na espera.   
Com amor,
Prometeu