Rubens esforçava-se
para abrir os olhos naquela manhã de domingo. Não subestimemos tal tarefa,
porquanto exigia-lhe uma força hercúlea. Morfeu interessava-se especialmente
pelo nosso herói, dentre tantas outras almas que vagam pelo mundo aos trapos.
Como era-lhe difícil o simples trabalho de abrir as pálpebras! Se um dia lhes
for proporcionada a ocasião de conhece-lo, perguntem-lhe sobre esse ocorrido
específico; garanto que lhes será dito o seguinte: “Deuses! Meus olhos eram
como os ombros de Atlas!” Pois bem, a manhã de Rubens anunciava-lhe o retorno
de Vênus.
Enquanto Rubens acorda –
o que pode levar algum tempo – entreguemo-nos ao luxo de uma pequena digressão.
O que pensa o homem comum sobre o amor? Uma pesquisa rápida faz descortinar uma
porção de websites repletos de
dizeres diversos a respeito do assunto. “Nunca implore carinho, atenção ou
amor. Se não for dado livremente, não vale a pena ter”, “Até de longe você me
faz bem”, “No amor não há ‘pessoas certas’, há pessoas que lutam para dar certo”,
“Vamos fazer assim: eu cuido de você, você cuida de mim”, “Felicidade é poder
estar com quem se ama em qualquer lugar” e, por último, “Amor é apenas uma
palavra... até que encontre alguém que dê um verdadeiro sentido a ela”. São
esses alguns exemplos, meus senhores. Sabem o que penso disso? Mesmo que não
tenham o menor interesse, lhes direi: o amor para o homem comum é o emprego
total de sua imbecilidade! Digo-lhes que esse sentimento perdeu todo o sentido
há muito tempo! Dizem amor – esse amor romântico – da necessidade vil de se
possuir alguém para que seu corpo, esse saco de carne e ossos ambulante,
produza boas sensações. “Ora, mas não são quaisquer boas sensações! A sensação
que se dá é de um êxtase indescritível! Sente-se tanto amor que...” Perdão,
senhores, mas urge uma interrupção. Diziam que se sente tanto amor que chega a
doer? Doer o que, esse baço podre que cultivam dentro de seus corpos? Já ouvi
de um molecote tais dizeres. Acreditava amar profundamente sua companheira e
amaldiçoava qualquer um que não sentisse o amor da maneira ridícula como o
sentia. Diria ele em qualquer ocasião em que percebesse que seus valores não encontravam
os valores de outrem: “É falso seu amor.” Ouçam ao Filósofo da Alvorada: “O
amor é o estado no qual os homens veem as coisas quase totalmente como não são.” Ora, o amor romântico, então, nada mais é do que um estado puramente ilusório!
Ama-se para se escapar da realidade dura – mas não menos verdadeira - que é a
solidão eterna! Vê-se logo que o amor para o homem é como uma muleta sem a qual
ele há de rastejar até o momento derradeiro... se assim quiser.
Estamos no ponto de nossa
narrativa em que Rubens acaba de calçar os chinelos (transferimo-nos para o
presente de nosso herói; abandonamos o passado). Há algo de poético neste
domingo banal, ou talvez o dia não seja de todo frívolo, mas como é um domingo,
atribui-se-lhe, pela ausência parcial de banalidade, um caráter poético. De
qualquer forma, Rubens sente o presságio da letargia, cujo início se deu em seu
primeiro ato: a tentativa de abrir os olhos. Ah, como essa morosidade lhe é difícil
de resistir! Canso-me somente de imaginá-lo em direção à cozinha a passos
lentos. Esperem! Alguém acaba de acionar a campainha. Surpreso, caminha à porta
e gira a maçaneta. Não há ninguém, mas quem quer que tenha sido deixou uma
velha caixa de sapatos sob alguns livros. Rubens reconhece os livros e, por
conseguinte, a pessoa que lhes havia deitado ao pé de sua porta. Havia sido
Tereza. Ora, na caixa Rubens sabe o que há; sempre soube que este momento
haveria de chegar: é Vênus esculpida em mármore por um artesão ateniense.
Rubens presenteara Tereza com esta maravilha há alguns anos, quando se deu sua
viagem solitária.
Para Rubens, o que era
Vênus? Ora, a deusa representava o oposto do que representa o amor para as
pessoas banais: não constituía uma muleta, senão uma consequência do anseio à
vida; não representava um desejo mesquinho, senão um eterno estado de gratidão.
Vênus dava-lhe asas e sua alma atravessava universos. Amava as mulheres que
passavam por sua vida como se ama o céu e o mar! Gostaria, sim, de tê-las por
perto; mas isso só para que pudessem sentir seu amor e para que aprendessem com
ele a semeá-lo. Tereza foi uma dessas mulheres, e Rubens a presenteara com
Vênus como que para lhe dizer: “Escolhi a ti para receber meu amor sublime!
Agora espalhe-o mundo afora!” Mas Tereza entendeu errado.
A devolução do presente
– ato extremamente rude e, portanto, altamente significativo – queria dizer uma
coisa: “Vejas só, cresci sempre a ouvir que quem ama se sacrifica pelo ser
amado e que não há amor sem proximidade, isto é, quem ama deve querer estar
perto todo o tempo, deve querer oferecer carinho sempre, deve, enfim, amar
apaixonadamente durante toda a vida o mesmo amante. Tu não me ofereceste nada
disso, logo concluo que teu amor é falso!”
Rubens agora sorri e
parabeniza mentalmente sua antiga amante pelo olhar poético. O retorno de Vênus
significa para Tereza a negação do amor. Rubens pensa: "Nega-se o amor
sublime ao confundir-lhe com o amor banal." Meus senhores, não mais nos entreguemos às imbecilidades dos cordeiros vingativos, não sejamos mais tal qual o molecote que outrora caçoou do amor de outrem. Deixem que sintam asco! Deixem que lhes repudiem! Deixem que esses cordeirinhos, fracos como moscas, temam aqueles que anunciam a alvorada e, por conta disso, manifestem-se como criaturazinhas raivosas! Deixem ainda que esses animais inválidos sintam-se presos para sempre às suas muletas!
O retorno de Vênus simboliza para Rubens o amanhecer. É hora de arrebentar o ovo furiosamente.