Sou Prometeu imerso no
oceano abissal. “E o que é o oceano abissal?”, perguntais-me. Digo-vos que é o assoalho da alma humana, é a região remota inexplorada: o
medo tornou-a inóspita e hostil. É desse abismo que o uivo dos lobos e o
grunhir dos porcos é ouvido; é nesse abismo que rasteja a víbora; é nesse
abismo que descansa a morte; é nesse abismo que a peçonha do escorpião é
destilada; é nesse abismo que sangra a lua; é nesse abismo que a flor fulva
prospera! É no abismo mais profundo do oceano da alma que paira o lamento da
lira. Determino-vos: contemplei vossas profundezas! Deixai que minha chama arda
no oceano abissal e traga luz a cada tímido e obscuro animal que insiste em
rastejar por entre as frestas da vergonha! No entanto, não admitais que a
aurora da benevolência perpetue em vosso abismo – de outro modo acabaríeis
cegando as criaturas do submundo. Acima de tudo: amai tudo o que é escuro e
negro, tudo o que é fétido e putrefato! Desprezai somente uma coisa: a fraqueza
e o ressentimento. Há beleza em tudo o que permeia a vida, exceto nas forças
que se afiguram como antítese do que é vivo. Ora, não falo da morte: amai também a morte! Ó homens que buscam além
do que é fútil e que não mais se entretêm com as imbecilidades dos cordeiros
vingativos: amai mesmo vossa face diabólica – e principalmente ela! Porquanto
não há mais um Deus e um Diabo; estes sucumbiram há muito e de suas cinzas
elevou-se Abraxas!
Não sou afeito à flecha
que trespassa a alma em um só golpe; sinto mesmo desprezo por aquilo que causa,
por meio da estética, o êxtase imediato. Este afigura-se como um sentimento
religioso, como a visão de um santo – coisa que não é mais para este século.
Somos homens da ciência, e o que se descortina de uma vez só como um espetáculo
amador deve ser por nós repudiado: nada menos. Como um palhaço que entra em cena,
a flecha impetuosa colore nossa face de riso; pensamos então: como é deliciosa
a vida! Perdoais-me a analogia deveras inadequada; posso atingir vossos corações
com o que é santificado, quiçá? Pois ouso dizer-vos que o mais santo dos santos
é também o mais palhaço: faz-me rir com sua vaidade – a propósito, tão colorida
quanto à face dos artistas de circo. O santo – e não só o santo – que é
atingido pela flecha uivante pensa que viu Deus: de fato foi apenas envenenado.
Este é o caráter da beleza imediatamente extasiante: tóxica!
Ah, mas não penseis que
me privo de toda beleza! Amo não a flecha que uiva como os lobos das estepes,
mas a flecha que, vagarosa, pouco a pouco perfura a alma. O santo não a
conhece, porquanto vive das fantasias que assaltam-no de quando em quando; e
quanto ele sofre quando não corre em suas veias o delírio! O homem afeito pela
flecha lenta, ao contrário, é repleto de disciplina e vibra enquanto caminha ao
seu destino. Sua trajetória: essa sim é amada como flecha impetuosa. No caminho
do espírito livre nada há que não possa ser transpassado por sua vontade. E,
enquanto a flecha de sua alma é lançada implacavelmente ao alvo, a flecha
da beleza lenta perfura, aos poucos e hesitante, seu coração. A grande alegria
gozada após tantos caminhos percorridos derrama-se paulatinamente sobre as
frestas de seu cérebro. Quando se dá conta, tantas montanhas foram sobrepujadas
que o homem livre regozija-se de sua força e persistência; não como o santo,
que, como um cão guloso, satisfaz-se com restos moribundos - não há como exigir
dele outra coisa -, mas como um homem nobre que se delicia com um banquete sem se
lançar desesperadamente ao alimento. O banquete é duradouro; os restos,
efêmeros. O líquido reluzente que penetra as fendas do homem livre é diferente
do chorume que enche a barriga do santo.
“Mas não nos incitastes, Prometeu, a amar tudo o que é negro e pútrido? Por que, então, não amar o líquido viscoso
na barriga do santo sempre faminto?” Ó homens sensatos, em verdade há muita prudência
em vossas palavras inquiridoras; mas não vos esqueçais de que há de se amar o
que é podre no oceano abissal porque seu estado putrefato só existe por falta
de luz; isto é, por falta de conhecimento! O santo e o que há nas vísceras do
santo, por outro lado, deve ser desprezado. O que o homem comum faz é o
contrário: ama o santo e bebe de bom grado sua bile, mas despreza o que foi
renegado em seu próprio coração. Por isso ofereço-vos minha chama: a da razão,
não a da benevolência. Iluminai o assoalho de vossas almas para que o que é moribundo
passe a irradiar vontade; mas não cegueis as bestas com vossa moral!
Lembrai-vos disso: a verdade purifica; a compaixão cega. Por isso, tornai puro o que é ignominioso, mas
espantai a aurora que insiste em queimar as criaturas das sombras.
E quem possui um pouco
de santo dentro de si deve lançar-se no abismo de sua alma!
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