quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O retorno de Vênus


Rubens esforçava-se para abrir os olhos naquela manhã de domingo. Não subestimemos tal tarefa, porquanto exigia-lhe uma força hercúlea. Morfeu interessava-se especialmente pelo nosso herói, dentre tantas outras almas que vagam pelo mundo aos trapos. Como era-lhe difícil o simples trabalho de abrir as pálpebras! Se um dia lhes for proporcionada a ocasião de conhece-lo, perguntem-lhe sobre esse ocorrido específico; garanto que lhes será dito o seguinte: “Deuses! Meus olhos eram como os ombros de Atlas!” Pois bem, a manhã de Rubens anunciava-lhe o retorno de Vênus.
Enquanto Rubens acorda – o que pode levar algum tempo – entreguemo-nos ao luxo de uma pequena digressão. O que pensa o homem comum sobre o amor? Uma pesquisa rápida faz descortinar uma porção de websites repletos de dizeres diversos a respeito do assunto. “Nunca implore carinho, atenção ou amor. Se não for dado livremente, não vale a pena ter”, “Até de longe você me faz bem”, “No amor não há ‘pessoas certas’, há pessoas que lutam para dar certo”, “Vamos fazer assim: eu cuido de você, você cuida de mim”, “Felicidade é poder estar com quem se ama em qualquer lugar” e, por último, “Amor é apenas uma palavra... até que encontre alguém que dê um verdadeiro sentido a ela”. São esses alguns exemplos, meus senhores. Sabem o que penso disso? Mesmo que não tenham o menor interesse, lhes direi: o amor para o homem comum é o emprego total de sua imbecilidade! Digo-lhes que esse sentimento perdeu todo o sentido há muito tempo! Dizem amor – esse amor romântico – da necessidade vil de se possuir alguém para que seu corpo, esse saco de carne e ossos ambulante, produza boas sensações. “Ora, mas não são quaisquer boas sensações! A sensação que se dá é de um êxtase indescritível! Sente-se tanto amor que...” Perdão, senhores, mas urge uma interrupção. Diziam que se sente tanto amor que chega a doer? Doer o que, esse baço podre que cultivam dentro de seus corpos? Já ouvi de um molecote tais dizeres. Acreditava amar profundamente sua companheira e amaldiçoava qualquer um que não sentisse o amor da maneira ridícula como o sentia. Diria ele em qualquer ocasião em que percebesse que seus valores não encontravam os valores de outrem: “É falso seu amor.” Ouçam ao Filósofo da Alvorada: “O amor é o estado no qual os homens veem as coisas quase totalmente como não são.” Ora, o amor romântico, então, nada mais é do que um estado puramente ilusório! Ama-se para se escapar da realidade dura – mas não menos verdadeira - que é a solidão eterna! Vê-se logo que o amor para o homem é como uma muleta sem a qual ele há de rastejar até o momento derradeiro... se assim quiser.
Estamos no ponto de nossa narrativa em que Rubens acaba de calçar os chinelos (transferimo-nos para o presente de nosso herói; abandonamos o passado). Há algo de poético neste domingo banal, ou talvez o dia não seja de todo frívolo, mas como é um domingo, atribui-se-lhe, pela ausência parcial de banalidade, um caráter poético. De qualquer forma, Rubens sente o presságio da letargia, cujo início se deu em seu primeiro ato: a tentativa de abrir os olhos. Ah, como essa morosidade lhe é difícil de resistir! Canso-me somente de imaginá-lo em direção à cozinha a passos lentos. Esperem! Alguém acaba de acionar a campainha. Surpreso, caminha à porta e gira a maçaneta. Não há ninguém, mas quem quer que tenha sido deixou uma velha caixa de sapatos sob alguns livros. Rubens reconhece os livros e, por conseguinte, a pessoa que lhes havia deitado ao pé de sua porta. Havia sido Tereza. Ora, na caixa Rubens sabe o que há; sempre soube que este momento haveria de chegar: é Vênus esculpida em mármore por um artesão ateniense. Rubens presenteara Tereza com esta maravilha há alguns anos, quando se deu sua viagem solitária.
Para Rubens, o que era Vênus? Ora, a deusa representava o oposto do que representa o amor para as pessoas banais: não constituía uma muleta, senão uma consequência do anseio à vida; não representava um desejo mesquinho, senão um eterno estado de gratidão. Vênus dava-lhe asas e sua alma atravessava universos. Amava as mulheres que passavam por sua vida como se ama o céu e o mar! Gostaria, sim, de tê-las por perto; mas isso só para que pudessem sentir seu amor e para que aprendessem com ele a semeá-lo. Tereza foi uma dessas mulheres, e Rubens a presenteara com Vênus como que para lhe dizer: “Escolhi a ti para receber meu amor sublime! Agora espalhe-o mundo afora!” Mas Tereza entendeu errado.
A devolução do presente – ato extremamente rude e, portanto, altamente significativo – queria dizer uma coisa: “Vejas só, cresci sempre a ouvir que quem ama se sacrifica pelo ser amado e que não há amor sem proximidade, isto é, quem ama deve querer estar perto todo o tempo, deve querer oferecer carinho sempre, deve, enfim, amar apaixonadamente durante toda a vida o mesmo amante. Tu não me ofereceste nada disso, logo concluo que teu amor é falso!”
Rubens agora sorri e parabeniza mentalmente sua antiga amante pelo olhar poético. O retorno de Vênus significa para Tereza a negação do amor. Rubens pensa: "Nega-se o amor sublime ao confundir-lhe com o amor banal." Meus senhores, não mais nos entreguemos às imbecilidades dos cordeiros vingativos, não sejamos mais tal qual o molecote que outrora caçoou do amor de outrem. Deixem que sintam asco! Deixem que lhes repudiem! Deixem que esses cordeirinhos, fracos como moscas, temam aqueles que anunciam a alvorada e, por conta disso, manifestem-se como criaturazinhas raivosas! Deixem ainda que esses animais inválidos sintam-se presos para sempre às suas muletas! 

O retorno de Vênus simboliza para Rubens o amanhecer. É hora de arrebentar o ovo furiosamente.