sábado, 28 de novembro de 2015

Monotonia

O medo do fracasso é a estagnação. Torna-nos morosos e lânguidos: pobres coitados à mercê de Deus. A piedade miserável que temos para conosco representa o sentimento mais ignominioso que existe entre nós, seres humanos. Amantes da podridão, somos animais complacentes com a própria alma pútrida e abatida. No final do dia, prostramo-nos cansados e esperamos que alguém acaricie-nos os cabelos com ternura e diga:
-Esforçaste-te com todo teu ser. Estás livre para deitar-te de consciência tranquila, porquanto deste de ti o melhor.
Impõem-nos desejos e vontades, enchem-nos de promessas e nos fazem desejar o amor de todo o mundo e a resplandecência característica daqueles que vivem no topo. Mimam-nos com seus carros sumptuosos, com suas mansões ingentes e com a glória da televisão. Vestem-nos com todos os sonhos burgueses, vendem-nos a felicidade por outdoors e nos induzem a acreditar que um dia, credores por nosso suado esforço, transgrediremos a linha que separa a utopia da existência. Posteriormente, surram-nos a face com a realidade e nos ridicularizam com a ignomínia do fracasso, para logo em seguida nos encherem de terna esperança por meio de livros de autoajuda.   
E acreditamos, sempre fiamo-nos na ideia de que demos nosso melhor quando, em verdade, oferecemos migalhas. Somos crianças à espera de que algo ou alguém intervenha por nós, porquanto, sozinhos, o medo de fracassar nos faz pusilânimes.
-Ele interverá, minha criança. Dar-te-á tudo o que tanto deseja e há de tornar-te alguém.
Deus: a mais brilhante criação da burguesia. Por seu intermédio, a sociedade aterroriza e castra a todos. Não somos mais que cobaias acovardadas pelo céu e o inferno. Divinizamos a moral e demonizamos a imoralidade. Cremos fielmente no bem e no mal, no certo e no errado, na conquista e no fracasso. Não temos audácia para lutar sozinhos pelo que deveras ambicionamos e nos prostramos derrotados por aspirações fúteis e frustradas que não são nossas. O que desejaste para ti?
Dissipamos o dia em antros de imbecilidade, entusiasmados com fotos de coelhinhos, gatinhos e ursinhos. Não existe o mero resquício de agressividade, qualidade primordial e inescusável para enfrentar o mundo e abocar aspirações. Não, somos criaturas oprimidas e aviltadas, distraídas com o que é aprazível aos olhos. Mendigamos aprovação e admiração: disto nossa frágil confiança depende.
Rastejamo-nos como vermes. Somos inundados por desejos alheios e manipulados por mentiras asquerosas: o livre arbítrio é a pior delas. Perdemos o laço com a natureza selvagem, porquanto passamos a acreditar em sua benevolência e misericórdia. Somos criaturas castradas, abatidas e solitárias. Distraímo-nos com o que é terno e cativa, com o que nos prometem nos anúncios de televisão, com vitrines repletas de vislumbres. Desviam-nos o olhar enquanto somos violentados. Exsudamos de medo, tememos não fazer jus às expectativas que pesam drasticamente sobre nós. Não abocanhamos vigorosamente as ambições que são verdadeiramente nossas, mas mendigamos e choramos por desejos fúteis que nos venderam, que nos disseram render glória e prestígio. Receamos não ser alguém. E assim, cingimo-nos de eterna monotonia.  

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A morte, a flor e a víbora

A noite era sombria e soturna. O silêncio denotava fuga: todos haviam escapado para dentro de si. Em posição fetal, mendicantes se satisfaziam com restos burgueses e, de quando em quando, eram surrados por meninos que voltavam tarde para seus pais, pessoas de bem. Havia lá fora, algures, veneno que a ninguém aprazia tragar. A cada esquina vislumbrava-se a flor amarela, e por trás dela espreitava o diabo.
Abancou-se em sua poltrona usual posicionada em frente à lareira. Não havia nada o que pensar; nunca havia. Entretanto, raros eram os momentos vazios. Repudiava instantes vagos. À vista disso, preenchia-os com o que havia de mais substancial em sua vida: pensamentos tão incorpóreos quanto o ar e fantasias tão efêmeras quanto sonhos de Vishnu. Tudo o mais convergia àquela existência detestável: o vazio.
Por trás do crepitar das chamas fazia-se audível a combustão de sua alma: ardia violentamente seu espírito, ainda que seu semblante permanecesse impassível. Seus olhos vidrados, cravados em seu coração, não se moviam um milímetro sequer. Como quem remexe um cadáver pútrido à procura da vida, cavava o próprio passado em busca da luz.
Trepava a árvore de sua mente uma serpente negra. Sombria e mefítica, espreitava o pássaro que havia pousado na ponta de um dos braços. Deslizava lúbrica e pacientemente contra a gravidade. Não havia angústia ou inquietação em seus movimentos: a serpente era dona do tempo. Preparava-se para o bote. O vislumbre, a determinação, o golpe e o sangue. Silêncio.  
Ergueu-se de seu assento e dirigiu-se vacilante e morosamente à ventana. De lá era possível contemplar grande parte da rua em que residia. Testemunhava um grupo de ébrios burgueses: homens e mulheres regressando de uma festa de gala qualquer. Não lhe era possível distinguir uma palavra do que diziam, mas as vozes graves misturadas às agudas e médias logravam seus ouvidos e lhe evocavam a cena de moscas famintas ao redor de cadáveres putrefatos. Contemplava, ademais, cães e indigentes vasculhando as mesmas latas de lixo à procura de alguma substância. Todos inalavam aflita e sofregamente o pólen da flor fulva.
Do mesmo modo, havia já tragado o veneno dourado do medo. Assim, era aterrorizado pelo que se descortinava cada vez mais próximo: o vazio. Havia em seus olhos trêmulos o pavor da morte e de depois da morte. Existência detestável a sua, preenchida por nuvens flavas e abismos ecoantes. Mais uma vez a víbora sombria serpenteava pelos vãos de seu crânio.
Não suportava contemplar o mundo. Ludibriava-se ao admirar o canto de um pássaro ou as cores do céu. Tudo era miragem e quimera: não havia amor ou beldade. Havia dor e desespero. A mácula humana residia em seu coração: terra úbere da qual brotava a flor do medo. Não lhe era possível suster a visão das ruas ou do firmamento, porquanto o homem e a natureza esmigalhavam-no. Assim, construíra um muro ingente ao seu redor.
Há anos não o cruzava. Tijolo por tijolo, desde sua infância empenhava-se a finda-lo. Devia aferrolhar-se dentro de si para não padecer das monstruosidades do mundo: seus pais lhe haviam já evidenciado. Do lado de fora não havia mais do que abutres aflitos à procura da morte, cães sedentos e seus ladros hostis, porcos imundos nutrindo-se da escória humana; havia medo, e do medo nascia o ódio.  Havia a flor, e da flor nascia a víbora.

Memento mori. O vazio é a substância da vida. 

domingo, 22 de novembro de 2015

A lua e o escorpião

A lua sangra. Vermelha e hostil como a Terra em tempos primórdios. Chora lancinantemente e busca em sua dor um conforto inatingível. Longínquo prostra-se seu criador que, cansado e abatido, renúncia à criação.
Diana desperta. De seus olhos correm lágrimas escarlates que deslizam vagarosamente por seu rosto alvo para finalmente atingirem o chão batido. A alvorada é anunciada melancolicamente por um distinto pássaro negro que pousa em seus ombros enquanto Diana vislumbra os primeiros raios do altivo rei, lançados por entre as copas das árvores. A manhã é triste, solitária e pungente. De seus seios cobertos por trapos eivados caminha um escorpião em direção à sua boca semiaberta, que cerra-se logo após a entrada do intruso. Sorri. O pequeno animal, que encontra abrigo em sua língua macia, úmida e escura, sensualmente infunde seu veneno no céu da boca de sua amante. Diana vocifera de prazer e seu brado silencia toda vida existente ao redor de sua casa de pau a pique.
Havia transcendido, há muito tempo, a linha tênue que separa a dor do deleite; para ela não existia dessemelhança. Sabia apreciar a mais atroz tortura e a mais desmedida paixão; podia deliciar-se em melancolia ao contemplar o canto de um pássaro e reconhecer a música no estertor de um enfermo à beira da morte. Em oposição à maioria dos seres sobre a Terra, sabia apreciar ambas as sensações, em razão de serem uma só.
Cada dia de sua vida era único e primeiro: se desfazia assim que Diana cerrava seus olhos para adormecer. Não lembrava-se de como havia chegado àquela casa, não tinha pistas acerca do que havia sucedido na noite passada e em sua mente não havia o menor vestígio de sua infância. Contudo, pensava, qual a relevância de tais memórias? Era, destarte, uma mulher privilegiada, porquanto conhecia o mistério dos seres sobre a Terra. Não conservava memória alguma de seu passado, assim sabia exatamente quem era.
Os sons e tons de vida ao redor de sua casa voltam a fazer-se presentes. É quase meio dia; a manhã triste e solitária fica para trás. Agora Diana não mais sangra pelos olhos: esboça o mesmo sorriso suscitado ao perceber que abrigava em sua boca, horas atrás, criatura tão delicada e peçonhenta. Dirige-se ao bosque para realizar o desjejum tardio.
O sol, no auge de seu reinar, aquece todos os seres e intensamente provê a energia motora da vida. O mesmo pássaro que viera anunciar-lhe a alvorada pousa agora, suavemente, no galho de uma macieira. Diana nota, neste momento, que lhe faltam os olhos: o motivo de seu canto demasiado triste. Faminta, corre a vista pelas frutas que pendiam da árvore. Uma maçã sui generis lhe chama a atenção: escarlate, luzidia, sumptuosa, íntegra e impecável. Pode ouvir-lhe o pulsante convite. O desejo emana, de ambas as partes, como o calor emana do fogo: tanto quanto ela, o fruto ardente deseja ser degustado.
E assim se faz. Seus lábios vermelhos lúbricos confundem-se com o vermelho escarlate do fruto enquanto seus dentes enterram-se libidinosamente na carne macia e pulsante. Seu corpo estremece. Um arrepio lhe percorre a espinha em direção ao cume de seu espírito e prostra-se como um animal cansado. Lembra-se. Do que? Do presente: o criador abomina e rejeita a própria criação. Deus está morto; o diabo, lascivo. Lânguida concepção, inventividade mórbida. Nenhum ser sobre a Terra está a salvo da própria selvageria.

A lua ainda sangra; o escorpião ainda vive.