segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O viajante e o sol


Anda só, ó viajante, que a lua não demora a nascer! Ártemis, que outrora sangrava, agora entrega-se ao regozijo que traz a noite taciturna. O escorpião que hospedaste em tua língua macia busca, enfim, sua toca, de onde saiu em busca da alvorada como um herói em busca da glória.

Anda só, ó viajante, que a noite te espera como espera a seu amado! A flor fulva, que antes prosperava nos abismos de tua alma, agora expande suas suntuosas pétalas ao céu como quem entrega um presente a Deus. Dela já não brota a víbora, o medo, o ódio ou a morte. Nada disso! Da flor fulva brota o pássaro vermelho do amanhecer que reverencia a noite quando é chegada a hora!

Anda só, ó viajante, e te detenhas somente ao admirar as flores! Sim, estanca-te nas flores, estes presentes dos imensos anos de acaso que contemplam a vida com magnânimos olhos coloridos e variados em formas! Estes presentes que emprestam de Apolo tudo o que é de belo e que vibram como o céu coberto de um azul reluzente!

Anda só, ó viajante, e sê como o sol: reverencia o cair da noite oferecendo teus braços luminosos ao firmamento que tomaste emprestado como caminho. Não temas a escuridão da alameda noturna que se descortina diante de teus olhos: entrega-te à tua natureza! Sê fogo, mas não te demores a reluzir em uma só paragem.

E quando perguntarem a ti, ó viajante, o porquê de tua dura caminhada, tu, diante das flores balsâmicas e sob o olhar sereno da lua, dirás: “Ando porque caminhar qualquer caminho prostrado sob a beleza deste mundo é ter diante de si o universo.”

O viajante e a flor


Eis que o viajante, sob o sol escaldante do deserto, encontra, enfim, seu oásis. Ele o deseja não pelos alívios e prazeres que promete a dócil paisagem, senão porque seu coração lhe diz: “Há também ali o que aprender.”

- Veja só: que presente do acaso encontrar tão magnífica paragem em dia tão belo! – diz o viajante a si mesmo ao deitar as vistas sobre o verde horizonte – Meus pés ardem mesmo sobre estes resistentes calçados e minha pele é incendiada sob os raios de meu companheiro reluzente; mas assim mesmo: que alegria inenarrável sinto neste dia!

Nosso herói adentra a cortina de esmeraldas e sente logo o frescor úmido da floresta. Seus pulmões arfam sob o suspiro das folhas e seus olhos, como espelhos, refletem o fulgor esverdeado das copas das árvores. É impossível se opor ao sorriso suave que, perante o canto dos pássaros, surge em sua face. Como a metamorfose de uma lagarta em borboleta, seu sorrir transforma-se em um gargalhar ébrio que ressoa pelos quatro cantos da mata: nosso viajante é tomado de um entusiasmo divino!

Mas há algo que, silenciando o soar de sua alma extasiada e estancando-lhe os passos leves, chama-lhe a atenção. Seus olhos percebem, a alguma distância, uma clareira da qual se estende um caminhozinho quase imperceptível cujas bordas são respaldadas por flores de um perfume intenso. Todo esse colorido em meio ao mar verde lhe soa como um clamor, e o viajante não tem escolha senão se entregar ao chamado docemente tingido por pétalas deíficas.

À voz das cores confunde-se, então, um canto terno e melodioso que, a princípio longínquo, passa a crescer em ritmo lento até que nada mais exista além dele. Como o desabrochar repentino de uma flor, a floresta dá lugar a um lago que se descortina tal qual um espelho, refletindo a vegetação que, em coroação, o veste. Ai! Mas nada disso existe para o viajante: para ele conta somente a moça cuja voz arrebatadora é derramada docemente por todo o oásis como um perfume. A cantora, que já havia notado sua presença muito antes, deita-lhe um olhar afável e, sem deixar de fazer música, dirige-lhe um sorriso comovente e levemente distorcido pelo cantar. Por longo tempo os dois se olham profunda e docilmente, e nosso herói não deixa de reparar nos detalhes mais ínfimos de sua musa. Seus lábios, tingidos de um vermelho vibrante, desenham-se perfeitamente e rodeiam sua boca como cadeias de montanhas ruivas a rodear um abismo; seus olhos, verdes e penetrantes, dotam-se da beleza de tudo que já contemplaram um dia, como crianças que brincam com o sol e passam a reluzir junto dele; seu vestido, colorido de um tom de rosa airoso, cobre sua pele como as pétalas de uma flor cobrem-na em botão; seus cabelos castanhos quedam-se suavemente por todo seu corpo como uma cascata a banhar diamantes e rubis. Ora, mas o canto tinha de encontrar seu fim: o destino dos sonhos é a névoa.

Seria justo dizer que onde há pouco havia criatura tão bela agora nada há senão flores vestidas de um rosa delicado?