terça-feira, 27 de junho de 2017

O delírio do santo

Sou Prometeu imerso no oceano abissal. “E o que é o oceano abissal?”, perguntais-me. Digo-vos que é o assoalho da alma humana, é a região remota inexplorada: o medo tornou-a inóspita e hostil. É desse abismo que o uivo dos lobos e o grunhir dos porcos é ouvido; é nesse abismo que rasteja a víbora; é nesse abismo que descansa a morte; é nesse abismo que a peçonha do escorpião é destilada; é nesse abismo que sangra a lua; é nesse abismo que a flor fulva prospera! É no abismo mais profundo do oceano da alma que paira o lamento da lira. Determino-vos: contemplei vossas profundezas! Deixai que minha chama arda no oceano abissal e traga luz a cada tímido e obscuro animal que insiste em rastejar por entre as frestas da vergonha! No entanto, não admitais que a aurora da benevolência perpetue em vosso abismo – de outro modo acabaríeis cegando as criaturas do submundo. Acima de tudo: amai tudo o que é escuro e negro, tudo o que é fétido e putrefato! Desprezai somente uma coisa: a fraqueza e o ressentimento. Há beleza em tudo o que permeia a vida, exceto nas forças que se afiguram como antítese do que é vivo. Ora, não falo da morte: amai também a morte! Ó homens que buscam além do que é fútil e que não mais se entretêm com as imbecilidades dos cordeiros vingativos: amai mesmo vossa face diabólica – e principalmente ela! Porquanto não há mais um Deus e um Diabo; estes sucumbiram há muito e de suas cinzas elevou-se Abraxas!
Não sou afeito à flecha que trespassa a alma em um só golpe; sinto mesmo desprezo por aquilo que causa, por meio da estética, o êxtase imediato. Este afigura-se como um sentimento religioso, como a visão de um santo – coisa que não é mais para este século. Somos homens da ciência, e o que se descortina de uma vez só como um espetáculo amador deve ser por nós repudiado: nada menos. Como um palhaço que entra em cena, a flecha impetuosa colore nossa face de riso; pensamos então: como é deliciosa a vida! Perdoais-me a analogia deveras inadequada; posso atingir vossos corações com o que é santificado, quiçá? Pois ouso dizer-vos que o mais santo dos santos é também o mais palhaço: faz-me rir com sua vaidade – a propósito, tão colorida quanto à face dos artistas de circo. O santo – e não só o santo  que é atingido pela flecha uivante pensa que viu Deus: de fato foi apenas envenenado. Este é o caráter da beleza imediatamente extasiante: tóxica!
Ah, mas não penseis que me privo de toda beleza! Amo não a flecha que uiva como os lobos das estepes, mas a flecha que, vagarosa, pouco a pouco perfura a alma. O santo não a conhece, porquanto vive das fantasias que assaltam-no de quando em quando; e quanto ele sofre quando não corre em suas veias o delírio! O homem afeito pela flecha lenta, ao contrário, é repleto de disciplina e vibra enquanto caminha ao seu destino. Sua trajetória: essa sim é amada como flecha impetuosa. No caminho do espírito livre nada há que não possa ser transpassado por sua vontade. E, enquanto a flecha de sua alma é lançada implacavelmente ao alvo, a flecha da beleza lenta perfura, aos poucos e hesitante, seu coração. A grande alegria gozada após tantos caminhos percorridos derrama-se paulatinamente sobre as frestas de seu cérebro. Quando se dá conta, tantas montanhas foram sobrepujadas que o homem livre regozija-se de sua força e persistência; não como o santo, que, como um cão guloso, satisfaz-se com restos moribundos - não há como exigir dele outra coisa -, mas como um homem nobre que se delicia com um banquete sem se lançar desesperadamente ao alimento. O banquete é duradouro; os restos, efêmeros. O líquido reluzente que penetra as fendas do homem livre é diferente do chorume que enche a barriga do santo. 
“Mas não nos incitastes, Prometeu, a amar tudo o que é negro e pútrido? Por que, então, não amar o líquido viscoso na barriga do santo sempre faminto?” Ó homens sensatos, em verdade há muita prudência em vossas palavras inquiridoras; mas não vos esqueçais de que há de se amar o que é podre no oceano abissal porque seu estado putrefato só existe por falta de luz; isto é, por falta de conhecimento! O santo e o que há nas vísceras do santo, por outro lado, deve ser desprezado. O que o homem comum faz é o contrário: ama o santo e bebe de bom grado sua bile, mas despreza o que foi renegado em seu próprio coração. Por isso ofereço-vos minha chama: a da razão, não a da benevolência. Iluminai o assoalho de vossas almas para que o que é moribundo passe a irradiar vontade; mas não cegueis as bestas com vossa moral! Lembrai-vos disso: a verdade purifica; a compaixão cega.  Por isso, tornai puro o que é ignominioso, mas espantai a aurora que insiste em queimar as criaturas das sombras.


E quem possui um pouco de santo dentro de si deve lançar-se no abismo de sua alma! 

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Prometeu Acorrentado

Covarde! Tu és, mil vezes, covarde! Já não basta a ti grunhir como os porcos e ladrar como os cães: tu anseias ser porco e também cão! Tu te enches de uma coragem falha e tímida que só serve para metamorfosear-se em coisa insignificante na hora de pôr-se em prova. Mesmo os porcos têm vergonha de teu grunhido aberrante, e mesmo os cães silenciam-se diante de teu ladrar a fim de discernir a boca que lança sons tão abomináveis. Tu, ó criatura deformada, rasteja não por ser serpente, senão porque teus membros já não dispõem de serventia alguma. Avalias que minhas palavras são duras? Pois digo-te que a verdade faz doer muito mais que a ave que devora tuas vísceras!
Ó Prometeu Acorrentado! Amo-te como o céu ama o mar, mas teu amor por grilhões impede-me que te socorra de teu pungente lamento! És de tal forma afeiçoado às correntes que não hesita em entregar de bom grado o fígado à tua desgraçada águia. Até mesmo confundo-me quanto aos gritos vindos do alto do Cáucaso, porquanto não posso identifica-los como motivados por dores ou prazeres. Digo-te, ó Amigo dos Homens: amaldiçoa Zeus e também Hefesto! Deixa de lado tua covardia e berra a plenos pulmões a mais variada sorte de injúrias aos teus malfeitores, àquele que te condenou ao sofrimento diário e àquele que forjou tuas cadeias! Cuspa tua saliva rançosa na face daqueles que são mais insetos que deuses!
Tu deixaste que te vazassem os olhos e entregaste de boa vontade tua língua aos lobos. Agora já não vês e não falas: tornaste-te um cordeiro à mercê dos teus açoitadores. Tua maldição paira sobre teu semblante esperando que estejas novamente inteiro – assim é que tua ave aguarda pacientemente a valorosa refeição. Ponho-me a gargalhar nervosamente quando vislumbro tua figura desnutrida: tua boca espuma pelos cantos e tu me espias languida e estupidamente como se em teu crânio teus miolos já houvessem sido moídos. Ai! Esperanço-me que tenha restado em ti uma fagulha de lucidez para que não te prontificasses a furar teu precioso tímpano! Se assim tiver sido, imploro-te: ouça-me, ó Ladrão das Chamas!
Ainda há tempo para que te libertes de tua maldita sina! Se pensas que tua ominosa águia é já tua única fonte de sensações, estás plenamente enganado. Deixa de imaginar que tua dor pungente é prazer e abrace o prazer verdadeiro! Prometeu, aguça-te bem os ouvidos: posso trazer a cura para teus membros inválidos, teus olhos vazados e tua língua extirpada! Tu podes ser grande como um dia foste; basta que deixes de lado afeição tão profunda pelas cadeias. O que? Tens compaixão da águia que se alimenta todos os dias da tua vida e que morrerá de fome caso tu te decidas pela libertação? Ó criatura estúpida: amaldiçoa tua desgraça! Deixa de amar aqueles que só te trazem moléstia!
A compaixão é o pior fardo que homens e deuses podem prostrar sobre os ombros. O que pensas que és? Um camelo, quiçá? Pois digo-te: deves tornar-te um leão! Deixa de sonhar que estás no deserto e que teu único consolo é encontrar uma alma que ponha sobre tuas corcovas os pesos mais abomináveis; livra-te do que mantem teus pés firmes sobre a areia quente! Entrega-te à dolorosa leveza! Aniquila o dragão em cujas escamas reluz o dito: “Tu deves.” Tu, ó Prometeu, Amante da Razão, já voltou teus ouvidos às palavras de Zaratustra? Sê capaz de dizer o tão sagrado Não; torna-te criança e diz o tão criador Sim!
Fora, ó abutres sedentos por cadáveres imundos! Deixai que o que está acorrentado liberte-se das correntes: assim vos ordeno. Lançai mão de vossa carência por tudo o que é ignominioso e atirai-vos ao abismo profundo de vossas almas! Não importuneis o Amante dos Grilhões, porquanto seu amor está prestes a diluir-se em minhas palavras: tornar-se-á, enfim, livre! Apresento-vos a preciosa luz que espantar-vos-á; refiro-me a ela como egoísmo. Prometeu, deixa de exalar compaixão para que estes vultos que pairam sobre ti enfim mergulhem sob a terra carcomida por vermes! Acorda, ó Prometeu Acorrentado, e liberta-te de tuas cadeias!


Que tipo de sonho sonhaste durante teu sono profundo?