domingo, 10 de abril de 2016

A lira

Não suportava mais o medo da queda: temor que estendia-se desde os primórdios de sua existência. A força esmagadora com a qual era tragado para as profundezas de seus próprios abismos o fazia aiar em pungente e doloroso sofrimento; no entanto, voejava sobre o cume mais alto de sua alma. Sim, era dotado de asas, as quais lhe foram dadas pelas artes. Quão belas poderiam ser as obras criadas por uma mente humana? Poderiam estas salvar-lhe de seu desespero existencial? Ao menos mantinham-lhe pairando sobre seus infernos, impedindo que estes o consumissem em chamas.
Encontrava-se moribundo e desmazelado em uma cela ignominiosa e soturna.  Era-lhe difícil e laboriosa a tentativa de trazer à tona a memória; não obstante, lembrava-se vagamente de um certo alguém vestido em um traje negro de colarinhos escarlates. Dizia-lhe, enquanto prostrava-se complacente no mesmo chão no qual descobrira-se há instantes:
- O passado, ao contrário do que pensas, não é imutável. Nós o construímos e o destruímos frequentemente e à vontade. Nada é tão verdadeiro que não possa se converter em mentira; nada é tão duvidoso que não possa se tornar certeza. O mundo, há muito tempo, não é mais sólido: vivemos tempos de liquidez. Duvide de teus olhos e teus ouvidos; duvide de tua consciência; duvide de teus medos e teus anseios. Confie em nós: a salvação reside na entrega.
Fora interrompida sua lembrança por ruídos metálicos e sons de passos pesados. Em seu cárcere reinava a escuridão completa, exceto pela meia-luz que o penetrava de uma pequena abertura retangular. Uma silhueta humanoide estancou-se por um momento em frente às grades que os separavam para logo após lançar displicentemente um pedaço de pão velho e rijo. Alimentou-se condescendente e apaticamente, bebeu da água enlameada que gotejava da torneira de sua jaula e deitou-se na superfície fria e úmida.
Era-lhe possível ouvir murmúrios distantes, lamentos e suspiros infames. Ao ouvir gritos lamuriosos e longínquos, crescia em si gigantesca indignação. “Por que me encontro aqui, como também se encontram estas pessoas sofridas da alma e do corpo?”, perguntava-se. Como era de se esperar em um mundo hostil e solitário, nenhuma resposta chegou ao seu espírito. 
Não obstante, pôde paulatina e quase imperceptivelmente sobrepor à lamúria uma música que lhe era conhecida. O plangor longínquo, não sabia se horrorosa ou belissimamente, lembrava-lhe os sons dos violinos de Sibelius, e estes, agora, lhe diziam tudo a respeito de cada boca em clamor.
Seu cárcere, então, dissolveu-se, e à sua volta pôde observar um mundo dourado e vermelho: uma floresta em um dia de outono. Pôde sentir o oboé misturar-se ao canto dos pássaros e o violoncelo pairar sobre a brisa gentil e acolhedora. Estava em paz, envolvido pela necessária solidão. Naquele instante tudo lhe era aprazível, e as chamas que ardiam em seu peito haviam cessado. A beleza estagnante e magnífica dava asas à sua alma.
No entanto, do belo fez-se o horror quando a música fora estraçalhada por um grito pungente e longínquo. O vermelho suave das folhas transformara-se em vermelho escarlate de consistência liquida e o dourado tornara-se meia luz a fraquejar em um corredor escuro. Via que o vermelho escorria de suas mãos e que havia um corpo desmantelado aos seus pés, com as entranhas prostradas a certa distância e o rosto desfigurado por apunhaladas profundas e impetuosas. O cadáver: sua mulher. Fora invadido inicialmente por um onda violenta de horror; no entanto, logo após as primeiras impressões, fez-se em sua face um sorriso de prazer ao perceber que havia concretizado a fantasia que nutria havia muitas primaveras.


Encontrava-se novamente em sua deplorável jaula, mas sentiu-se em paz ao saber que os murmúrios longínquos eram, na verdade, lamúrias de sua própria alma. A música pairava sobre seus lamentos. 

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